sexta-feira, março 20, 2009

A Crise Vista por um Prisma Liberal



Rodrigo Constantino, para a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME)

Virou “lugar-comum” culpar o livre mercado pela atual crise que assola o mundo. Em todo lugar se escuta que a ausência de regulação e a ganância dos capitalistas estão na raiz dos problemas. Pretendo mostrar abaixo uma análise diferente das causas desta crise financeira, utilizando um prisma liberal. Meu objetivo será demonstrar que as impressões digitais do governo americano estão em todas as cenas do crime.

Em primeiro lugar, os Estados Unidos não experimentam mercados verdadeiramente livres há quase um século. O governo intervém ativamente usando tanto a política fiscal como a monetária, além de inúmeras regras regulatórias. Um dos principais preços de mercado é justamente a taxa de juros, e ela vem sendo sistematicamente manipulada pelo governo, através do Banco Central. A emissão de papel-moeda e as operações no open market são instrumentos à disposição do banco central para a criação de mais oferta monetária. Historicamente, todo governo abusou deste mecanismo, usando a inflação para financiar seus gastos. O resultado é o estímulo de mais crédito na economia, com taxas de juros artificialmente mais baixas. Investimentos que não seriam realizados numa economia realmente livre acabam se tornando atraentes, e muitos recursos são desviados para destinos indesejados.

Esses excessos estimulados pelo governo necessitam de um tempo para ajuste, sempre doloroso. Uma analogia com um bêbado pode ilustrar melhor a situação: após o consumo excessivo de álcool, uma ressaca se faz necessária para o organismo limpar as impurezas acumuladas. No entanto, o banco central americano atua como alguém que oferece novas rodadas “grátis” de bebida, postergando a ressaca, mas também aumentando os riscos. Se muita liquidez for injetada para evitar freqüentemente a ressaca, o resultado pode até ser uma cirrose. O Banco Central atua como emprestador de última instância, o que é análogo a uma rede de segurança para trapezistas. Sabendo-se a priori que esta rede de segurança estará lá para proteger no caso de uma queda eventual, os trapezistas naturalmente irão ousar mais nas manobras. É o que os economistas chamam de moral hazard.

A bolha da Internet estourou em 2000, uma fase de ajustes dolorosos era necessária, mas o governo considera tais ajustes sempre impopulares. As intervenções, como a manutenção da taxa de juros em 1% ao ano por longo período, aliviaram as seqüelas da crise, mas ajudaram a criar uma nova bolha ainda maior. Não deixa de ser curioso o fato de que era Alan Greenspan o mentor desta política, já que ele foi um ferrenho defensor do padrão-ouro no passado, objetivando justamente proteger a economia de políticas inflacionárias como esta. Durante sua gestão no comando do Fed, o mercado financeiro criou a expressão “Greenspan Put”, exatamente para se referir a esta rede de segurança garantida pelo Banco Central no caso de alguma catástrofe.

Mas a intervenção do governo não se restringiu à área monetária. O setor imobiliário sempre foi foco de muita atenção por parte dos políticos, pois a demanda pela casa própria costuma ser uma prioridade para muitos cidadãos. Em 1977 foi criado o Comunity Reinvestment Act (CRA), com o objetivo de obrigar bancos a emprestar uma parte dos seus ativos às comunidades carentes. Em 1994, o governo estendeu as metas do CRA, e em 2005, após um escândalo contábil envolvendo a Freddie Mac, o governo resolveu punir a empresa demandando mais crédito hipotecário para as classes de baixa-renda. Em outras palavras, o governo exerceu enorme pressão para que o crédito imobiliário chegasse às classes mais baixas, com menor condição de pagamento. Foi justamente este setor subprime do crédito imobiliário que experimentou o maior crescimento nos últimos anos, caracterizando uma verdadeira bolha que depois estourou.

Muito se fala sobre ausência de regulação como causa da crise também, mas alguns dados colocam esta análise em xeque. Os setores no epicentro da crise atual não eram os menos regulados, mas sim setores bastante controlados como os de seguro, bancos e financiamento imobiliário. A Fannie Mae e a Freddie Mac contavam com um órgão regulador especial, a OFHEO, cuja missão era cuidar da saúde financeira dessas empresas. Isso não impediu que o grau de alavancagem delas chegasse a cinqüenta vezes seu capital. Já o setor de hedge funds, normalmente alvo preferido como bode expiatório, perdeu com a crise, mas não tanto quanto esses outros setores mais regulados. A acusação de que o mercado americano não tem regulação é simplesmente falsa. Existem diversos órgãos reguladores, como a própria Securities and Exchange Commission (SEC) e o Federal Reserve System (Fed), que controlam os mercados minuciosamente. Os reguladores podem até ser acusados de negligência, mas não faz sentido falar em ausência de regulação.

Como espero ter deixado mais claro no resumo acima, as intervenções do governo americano estão no epicentro da crise atual. Evidentemente, isso não exime de culpa os agentes do setor privado, principalmente no mercado financeiro. De fato, houve claros excessos fruto de irresponsabilidade de muitos desses agentes. Mas quando todos erram ao mesmo tempo, deve-se procurar a causa em algum fator exógeno. As manipulações que o governo vem fazendo no mercado, principalmente no que diz respeito à oferta monetária, explicam melhor estes erros coletivos num mesmo momento.

Acertar o diagnóstico é fundamental para acertar o remédio. Enquanto a visão predominante for a de que o mercado falhou, a solução proposta será mais governo, mais intervenção e mais regulação. Pode-se acabar dando mais veneno em vez de adotar as medidas necessárias para a cura definitiva. Ocorreu uma bolha de crédito, mas o governo tem estimulado justamente mais crédito como solução. Os americanos foram acusados de consumismo desenfreado, mas o governo tenta estimular mais consumo e menos poupança. Tenta-se, como sempre foi o caso, evitar o impopular ajuste necessário. Salva-se empresas que deveriam falir, obrigando os pagadores de impostos a sustentar companhias ineficientes. Enfim, aplicam-se os mesmos instrumentos causadores do mal como se fossem parte da cura agora. É como tentar curar a leucemia usando sanguessugas.

É compreensível que os americanos não queiram pagar a conta dos excessos cometidos, e que os políticos tentem jogar para frente esta conta. Mas hipotecar o futuro das próximas gerações não vai resolver o problema. Os déficits criados pelo aumento dos gastos públicos terão que ser pagos eventualmente, e a emissão acelerada de moeda não passa de um imposto inflacionário disfarçado. O governo tenta uma vez mais evitar os ajustes necessários na economia, para limpar os excessos da bonança artificial. Insanidade, como lembrou Einstein, é fazer tudo igual novamente e esperar resultados diferentes.

Um comentário:

Ninego 鱼 disse...

A economia de livre mercado é naturalmente centenas de bolhas na qual se misturam otimistas e pessimistas, ou "sonhadores" e "cépticos". No artigo "The crisis & what to do about it", de George Soros, no New York Books, ele monta uma teoria fundada na ideia de "reflexivity", que grosseiramente falando passa a mão sobre o assunto da onda de otimismo e da ruptura de pessimismo.

É importante os estudo dos números na economia, mas ela tende a mostrar mais uma hierarquia de psicologias do que propriamente uma espécie de lei física do custo/preço/lucro (matemática com fundo humano). Essa ruptura no modelo americano de gestão que envolve não apenas um player (o tal do governo) mas todo o desenho das intituições e remunerações dos executivos vai aperfeiçoar a cultura americana em vários sentidos, consequentemente sua diversidade de produtos.

O governo sempre vai ser um player. Não adianta apagá-lo do mapa, pois sempre haverá bolhas em economia de mercado. Algo para se debruçar é saber qual o tamanho perfeito para cada momento de uma economia de livre mercado que muda constantemente de tamanho, direção de fluxos e variação de sistemas de gestão e direitos de decisão sobre os insumos, tanto os complexos como instrumentos financeiros quanto os mais básicos, as comoditties.

Com o atual problema, sobretudo abalando o mundo acidental, a China segue crescendo aos olhos de todos (How China sees the world, at the economist). Daí entramos naquilo que disse. Os direitos de decisão irão ser parcelados cada vez mais em favor de mãos chinesas ou os americanos podem reverter a falência do jogo deles? É isso o que importa na verdade agora.