segunda-feira, maio 10, 2010

A pseudo-humildade como forma de arrogância



Rodrigo Constantino

No filme Dogville, a personagem de Nicole Kidman, Grace, foge de um pai mafioso e encontra refúgio numa pequena vila, onde todos parecem boas pessoas. No começo, esta impressão permanece, mas no decorrer do tempo cada um dos moradores, ciente da docilidade passiva da fugitiva, e de sua dependência do abrigo que oferecem a ela, começa a abusar da pobre coitada. A escalada de abusos foge de qualquer padrão razoável, e ela se transforma literalmente numa escrava, incluindo a função sexual. Os moradores são, afinal, humanos, demasiado humanos, sob a influência de todas as paixões perversas que afetam os homens.

Mas a personagem de Nicole suporta cada um dos abusos, não por medo do pai, mas por uma sensação de superioridade moral um tanto cristã. Oferecer a outra face, eis o que ela literalmente faz. Não julgar para não ser julgado parece sua máxima. Colocando-se neste papel, ela tolera toda a violência contra seu corpo e mente. Mas a arrogância de sua postura vem abaixo quando seu pai finalmente vai ao seu encontro. O diálogo dos dois é a parte alta do filme. Ele mostra a ela como a verdadeira arrogante é ela mesma, por se colocar neste pedestal sobre-humano, acima do bem e do mal, do certo e do errado.

Ao aturar cada um dos atos de abuso sem reação, Grace está tentando posar como nobre, como superior a todos eles. Ela se coloca como alguém capaz de perdoar nos outros atos que jamais aceitaria perdoar nela mesmo. Encara aquelas pessoas como vítimas das circunstâncias, como cães cuja natureza é aquela mesmo. Para Grace, seus estupradores e torturadores estavam apenas fazendo o melhor possível. Seu pai, então, questiona se este melhor possível era bom o suficiente. Ele pergunta se ela faria o mesmo julgamento fosse ela do outro lado, como autora daqueles atos abomináveis. Com isso, ele mostra que ela era a verdadeira arrogante, no fundo, a pessoa mais arrogante de todas!

Convencida pelos argumentos do pai, ela não apenas aceita que matem todos na vila, como faz questão de ver alguns sofrendo durante o ato de vingança. Ela rompeu a casca de hipocrisia e voltou a ser humana, demasiada humana. Ela resolveu fazer justiça, em vez de oferecer a outra face. Ela julgou e condenou os seus carrascos, em vez de suspender qualquer julgamento pela impossibilidade de sabermos o que é certo ou errado. Com a ajuda do seu pai, ela finalmente compreendeu que toda aquela humildade era falsa, uma das piores formas possíveis de arrogância.

Sempre me lembro deste filme quando vejo algumas pessoas desfilando uma pseudo-humildade típica dos mais arrogantes. “Só sei que nada sei” pode ser uma idéia realmente saudável, para despertar humildade legítima em seres falíveis. Mas pode muitas vezes ser também uma tática de posar como o verdadeiro sábio, aquele que, afirmando a ignorância, pretende conquistar a imagem de inteligente. Alguns relativistas negam a possibilidade de sabermos o que é certo ou errado, com uma certeza dogmática de que eles estão certos, com a razão. Dizem que não devemos julgar os outros, já fazendo um julgamento duro contra todos aqueles que discordam. Pregam a tolerância à diversidade, intolerantes com todos aqueles diferentes deles.

Os hippies da Nova Esquerda que surgiu nos anos 1960 nos Estados Unidos podem ser um bom exemplo. Diziam-se não-conformistas, mas prezavam a conformidade acima de tudo. As roupas e os cabelos iguais eram uma maneira de expressar valores comuns, uma forma similar de ver o mundo. Os símbolos da paz podiam representar algo bem diferente de uma suástica nazista, mas ambos eram uma espécie de insígnia, facilmente reconhecível para a identificação de um companheiro. As comunidades hippies, segregadas do restante da sociedade, eram ambientes confortáveis para seus pequenos grupos, que não gostavam muito da idéia de conviver com as diferenças. Os hippies eram muito tolerantes, mas não toleravam um típico ícone do capitalismo ocidental. Se for provável que um empresário com terno e gravata tivesse preconceito contra um hippie naquela época, não é menos provável que a recíproca fosse verdadeira.

Quando estou diante de alguém que afirma aos quatro ventos que é bastante tolerante, que celebra a diversidade, que não costuma julgar ninguém, que somos todos incapazes de reconhecer o certo e o errado, eu redobro minha desconfiança natural. Existem exceções, mas normalmente são pessoas intolerantes, que adoram a conformidade, que julgam todos à sua volta, e que têm certeza de que estão certos. Tanta humildade assim, comunicada abertamente com um orgulho visível, costuma ser um disfarce para uma extrema arrogância.

7 comentários:

Felipe Santos disse...

Como bom "inocente útil", já fui vítima desse "duplipensar", já fui um "arrogante"... pensava realmente que as pessoas eram boas, éticas e morais por natureza e aceitei, até certo ponto, muitos abusos calado, acreditando dar o exemplo do alto da minha suposta moral elevada!!!

Em minha defesa (e daqueles que ainda pensam dessa forma), poderia alegar que pelo menos tentei traduzir em ATOS aquilo que muitos apenas PREGAM, mas que no fundo não o fazem... entre arrogante e hipócrita, escolhi a arrogância!!! :-P

Hoje me criticam qdo devolvo mais NÃOs do que SIMs, estranham minhas opiniões fora do "padrão", principalmente na esfera religiosa... à qual não faço parte faz tempo!!!

Excelente artigo Rodrigo... gosto muito quando o foco muda para o indivíduo... me dá esperança que isso crie uma "reação em cadeia" que faça todos leitores repensarem seus atos, dos amigos e inimigos e não apenas dos de "entidades" como governos, milícias e afins...

Para mim, o ponto de origem da verdadeira mudança surge, parafraseando um site que gosto muito, não quando todos pensam ou criticam, mas sim quando todos pensam criticamente... coisa impossível de fazer sem buscar entender os COMOs e PORQUÊs... e à partir daí escolher com responsabilidade e precisão (sem paixões exacerbadas) como melhor AGIR!!!

Tiago disse...

Constantino, quando for fazer spoiler assim, tem que avisar antes... Eu já tinha visto o filme, mas vai que alguém nunca viu...

No mais, belo texto!

Abraço

Anônimo disse...

Grande texto!
Parabéns
André F. Nunes de Nunes

Unknown disse...

Muito bom!
[]s

Leo SKHM disse...

Spoiler!!! Spoiler!!! Spoiler!!!

Lendo o início do texto me deu vontade de assistir o filme, mas você já contou o final dele. Agora o filme perdeu muito da sua graça.

ntsr disse...

'alguém que afirma aos quatro ventos que é bastante tolerante, que celebra a diversidade, que não costuma julgar ninguém, que somos todos incapazes de reconhecer o certo e o errado'

Na verdade essa lógica de nada significa nada é só pras coisas que são convenientes pra eles negarem.Quando é pra concluir o que eles já querem concluir aí sim ele é bem capaz de 'separar o certo do errado'

fejuncor disse...

Artigo magnífico. Conheço bem, mas beeeem mesmo esse tipinho rsrsrs. Convivo com ele. Na real de modo mais amplo isso representa até um traço cultural.

Comparando. Na cultura latina, por exemplo, há uma tendência a referida mentalidade, enquanto outras culturas como a alemã com sua objetividade a rejeitam – estes são taxados de frios e “calculistas” por aqueles. Mesmo dentro do Brasil noto nordestinos carecendo duma identidade forte - vide a mania de batizar times de lá com nomes importados como o Flamengo-PI, Boca Júnior-SE (assim mesmo, sem plural) Botafogo-PB o maior campeão estadual, Palmeiras do Nordeste, Corinthians-RN que copiou até a camisa do clube homônimo, entre outros – no discurso sempre a celebração da diversidade, ao passo que os gaúchos e catarinenses têm uma personalidade tremenda negando esse culto ao diverso, bom é o meu – esses são chamados de bairristas por aqueles.

Sobre os hippies, penso que o mundo talvez esteja precisando deles. Não pregavam a falta de banho, apenas não aceitavam o banho sem necessidade. Não desmereciam o soldado, apenas tinham pena de vê-lo mutilado por tão pouco. Mas os tempos mudaram. Ser hippie, hoje, teria que ser conseqüência de uma reflexão um pouco mais complexa do que aquela. Daquela vez a coisa estava fácil. O Bush daquele tempo era um palhaço mais evidente do que o de hoje. Ou então eu que não sei interpretar o tempo que vivo.

Mas concordo. Entre todas as formas de esnobismo, a forçassão de barra da falsa-humildade arrogante, é uma das mais intragáveis.