terça-feira, abril 19, 2011

Como era gostoso nosso comunismo

ARNALDO JABOR

O Estado de S.Paulo

O artigo que FHC escreveu sobre um possível programa novo para o falecido PSDB caiu na boca maldita do dia a dia, no cafezinho ideológico dos sabotadores e oportunistas. Todos sabem o que ele quis dizer, mas fingem que não, para manter o mito sem vergonha da "herança maldita" que eles conseguiram emplacar, graças à ignorância política do povão, sim. O povão não tem educação política para entender a complexidade de um projeto social democrata, que é o único que pode enxugar os absurdos que incham um Estado falido, mas que os demagogos ainda conseguem enfeitar de "patrimônio nacional". Sempre distorcem o que FHC fala, num permanente desejo de fazê-lo "direitista", neoliberal e outros ridículos xingamentos.

Ele quis dizer que o PSDB não deve continuar surripiando o discurso populista e demagógico do PT, na base de "fome" de um lado e "indigestão" do outro. Disse que o PSDB tem a tarefa de explicar o complexo programa social democrata, para a nova classe média que se forma aqui. Na mesma hora o Lulão, atual showman e palestrante, acusou-o de desprezar o "povão". Um dia, essa mentirada ainda vai ser corrigida pelos historiadores sérios do futuro. Se é que haverá futuro... Mas, eu entendo a cabeça dos comunistas. Não dos picaretas de hoje, mas dos bons e generosos comunas de 30, 40 anos atrás: românticos e corajosos. E iam à luta - não estavam atrás de boquinhas e mensalões.

Ai, que saudades do comunismo... O povão era nossa boa consciência, o povão era nosso salvo-conduto para a alma pacificada, sem culpas - o povão era nossa salvação. O ritmo das coisas tinha a linearidade de um filme acadêmico. Nós, jovens de esquerda, falávamos muito em "luta de classes", mas não conhecíamos ainda a violência da "reação". Acreditávamos em um Papai Noel histórico.

Mas, mesmo assim, como num Amarcord vermelho, eu me lembro com saudade dos anos 60, durante a Guerra Fria... Ah, como era bom se sentir acima dos outros, por superioridade ética. Nós éramos mais "puros", mais poéticos, mais heroicos que os meus colegas da PUC, todos já de gravatinhas adultas.

Eu, não. Eu era comunista. Andava mal vestido, com minha testa alta, barba revolucionária, citando Lenin em francês: "La Liberté, pour quoi faire?" (Liberdade, pra quê?"). Ah... como era bom se sentir superior a um mundo povoado de "burgueses, caretas e babacas", como eu classificava a humanidade. E todo esse charme vinha sem esforço, sem estudar nada; bastava ler um ou outro livrinho da Academia da URSS, decorar meia dúzia de slogans e pronto, eu podia andar com minha camisa de marinheiro aberta ao vento e vagar por Copacabana, olhando em volta a população de "alienados", trabalhando em suas vidas "medíocres".

Ah... que saudades dos amores de esquerda, quando eu cantava as meninas ainda sem a maquiagem burguesa, a quem eu lançava a cantada infalível: "Não seja "pequeno-burguesa" e entra aí no "aparelho", meu bem... Nosso amor também é uma forma de luta contra o imperialismo".

Como nós amávamos os operários, que na época eram o "futuro da humanidade". Nas oficinas do jornal comuna que fazíamos, crivavam-nos de perguntas e agrados, sendo que os ditos operários ficavam desconfiados e pensavam que nós éramos veados e não fervorosos marxistas.

Como me alegrei quando Mao Tsé-tung proibiu Beethoven na "revolução cultural", pensando: "Claro, temos de raspar tudo que a burguesia inventou e começar de novo" - um mundo novo feito de agricultura e homens fardados de cinza, rindo, felizes, unidos pelo futuro do "povão". Tiveram de matar uns 10 milhões de "alienados", mas era para o Bem...

Como era bom ignorar as neuroses pequeno-burguesas de minha mente, pois eu não me sabia melancólico e narcisista; eu era apenas um comunista "saudável" como um cartaz de balé chinês. Amava as reuniões secretas - muito cigarro e a sensação de viver uma missão profunda. As discussões sem fim: "questão de ordem, companheiro!", "o companheiro está numa posição revisionista" ou "a companheira está sendo sectária
em não querer dar para mim".

E a beleza de não ter um tostão e pedir dinheiro à mãe ou roubar do paletó do pai (milico "reaça") para comprar Marlboro de contrabando (meu secreto pecado)? Era belo não ter um puto e se orgulhar disso, na convivência dos botequins, olhando os operários bêbedos de pobreza e pensar: "Um dia eles serão "homens totais", "sujeitos da história", enquanto os mendigos vomitavam no meio-fio - gente que eu chamava com
desprezo de "lumpens"".

Que saudades. Tudo era possível - bastava convencer o proletariado de que os burgueses malvados, aliados ao latifúndio improdutivo e dominados pelo imperialismo americano eram a causa de seus males. Pronto; aí, os proletários conscientizados tomariam o poder, e tudo seria perfeito e bom. Por isso, eu tenho hoje tanta saudade da generosa burrice que nos assolava.

E depois, quando a barra pesou de 68 em diante, com a dura frieza da era Médici, lembro-me do sentimento de ser uma "vítima" real da ditadura, fugindo da morte, ajudando os reais suicidas que faziam a guerra urbana, achando que iam derrotar o Exército com meia dúzia de revólveres e assaltos a banco. Muitos morreram. E, mesmo na tragédia daqueles dias, senti a delícia dolorida de ser uma vítima "santificada" da violência da direita, e isso me enobrecia, sempre acima dos "babacas, burgueses e caretas".

Um dia, um companheiro (que morreu há pouco...) me disse: "Não tema a morte. Marx disse que somos seres sociais. Assim, o indivíduo é uma ilusão. Para o comunista a morte não existe." E eu sonhei com a vida eterna.

Era bom, era lindo. Por isso, quando vejo as demonstrações de bolchevismo arcaico nos arredores do governo, não me horrorizo, nem reclamo, como fazem esses meus colegas jornalistas "burgueses, neoliberais vendidos aos patrões". Ao contrário, tenho até vontade de chorar pelos bons tempos...

Comentário: O "mea culpa" de Jabor é interessante por alguns aspectos. Mostra como "revolucionários" fanáticos, na maioria dos casos jovens, abraçam suas seitas em busca desta sensação de "superioridade moral". Eles são os únicos "donos da Verdade"; o restante não passa de um bando de alienados, vítimas do "sistema". Para eles, basta repetir uns 3 slogans tirados do livro de um "guru" da seita, e pronto: o mundo está compreendido, eles possuem a razão, e são os únicos defensores da Justiça, Amém!

São os verdadeiros alienados, que juram ter compreendido o complexo mundo dos homens, apresentando "soluções" prontas, mágicas, SIMPLES! É tudo tão simples... Luta de classes, capital x trabalho, exploradores x explorados, tudo culpa "deles", dos opressores. O monopólio das virtudes é a marca registrada dessa turma. Somente eles querem realmente lutar pelos fins nobres. Quem discorda de seus meios, de suas premissas, só pode ser um inimigo da liberdade, da Justiça, claro!

E que entorpecimento deve gerar ser membro de uma seita dessas... O herói pela Justiça, pela liberdade, contra o mundo de alienados que precisam ser libertados. Os únicos com uma ideologia "científica", contra os demais, todos ignorantes. E não pensem que somente comunistas são assim! Muitos anarquistas ditos "libertários" assumem a mesma postura, de seita fechada, de detentores da Verdade absoluta, onde basta discordar de uma vírgula para ser tachado de "herege", de inimigo da liberdade. Infelizmente, o fanatismo religioso/ideológico ainda conquista muitos seguidores, loucos por essa "solução definitiva" para os complexos problemas da humanidade. São intolerantes e perigosos esses fanáticos.

6 comentários:

Anônimo disse...

'E não pensem que somente comunistas são assim! Muitos anarquistas ditos "libertários" assumem a mesma postura, de seita fechada, de detentores da Verdade absoluta, onde basta discordar de uma vírgula para ser tachado de "herege'

Exatamente! Esses moleques não são aliados, eles são um peso.Eles fazem um favor pra esquerda mostrando uma defesa do capitalismo cheia de furos e de idéias sem noção.

Beto disse...

Constantino, cada vez melhor cara!

Parabéns!! Mas por favor, não fique muito tempo sem escrever por aqui, ok?!

Abraços!!

Vergilio disse...

Será que estamos sonhando?
Será que o chefão do Partido Comunista Cubano, o Coma Andante Cumpanhero Fidel, opositor universal do capitalismo que ele sempre condenou com o mal do universo está mesmo pedindo o penico e pedindo a contribuição capitalista para eliminar o monstro que ele criou e limpar o monte de lixo produzido em Cuba durante os últimos 52 anos de barbarismo político ideológico?
Será que o imbecil está fazendo “mea culpa” e se arrependendo perto da hora da morte depois de ter despojado e sugado até a ultima gota de sangue do povo cubano ignorante? Mas o regime cubano não foi sempre excelente um excelente modelo que deveria ser copiado e adotado pelo universo todo?

Podem ter certeza, milagre que não é. Será que nem ele mesmo está mais conseguindo comprar seus tênis e abrigos NikES e ADIDAS e outros mimos e benesses e brinquedinhos que os coletivistas de todas as espécies adoram, mas que somente o capitalismo pode prover?
KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK.

carlos disse...

Desculpe Arnaldo, mas qual o problema em ser de direita e liberal, não posso, é crime?

Anônimo disse...

Nao é confortavel ter verdades supremas?

Tudo se justifica assim.

Gilvan Badke disse...

Excelente reflexão.