quinta-feira, fevereiro 23, 2012

Sinais

Rodrigo Constantino

(O texto abaixo é o primeiro conto que o autor deste blog resolveu escrever, navegando por mares até então desconhecidos. Não se sabe se outros virão após esta estréia)

Ricardo abriu os olhos de repente. Ver ou não ver o relógio, eis a questão! Tomado por um intenso receio, ele já sabia não ter mais alternativa. Esticou a mão em meio à escuridão e puxou o relógio, colocando-o bem em frente aos seus olhos arregalados. 3:00. Não era 2:59, tampouco 3:01, mas sim 3:00, com uma precisão suíça. Tudo o que ele não desejava, ou achava que não desejava.

Subitamente, um forte calafrio tomou conta de seu corpo, da ponta dos pés até o último fio de cabelo. Estava suando frio. Ele não podia acreditar no que via. Em nítido desespero, cutucou com a delicadeza de um ogro sua mulher, Alissa, que dormia profundamente. Com brados apavorados, disse em sua voz rouca e trêmula:

- Acorda, Alissa! Acorda! Veja! São três em ponto! O que isso quer dizer? Será Ele? Caramba! Uma vida inteira de crenças puramente racionais colocada abaixo em um segundo! Não pode ser. Meu Deus!

- Calma, Ricardo! Você é muito bobo... fica calmo! Isso não é nada. Acontece. É pura coincidência. Seu relógio biológico foi programado para te despertar nesta hora. Deixa eu dormir que amanhã tenho que acordar cedo para trabalhar.

Mas a adrenalina já tinha consumido cada milímetro do corpo de Ricardo, totalmente retesado. Antes de ir dormir, na noite anterior, ele ainda tinha dito para Alissa, com ar jocoso:

- E se eu acordar às três horas em ponto? Isso vai ser claramente um sinal, um aviso.

Alissa bem que tinha alertado, com um toque de clarividência, que se isso acontecesse mesmo, tudo que ela queria era ser deixada em paz, dormindo. Mas isso já era pedir demais. Naquele momento, Ricardo soube a definição de medo, de uma forma que palavras não podem explicar.

Também, pudera: tudo conspirou contra o pobre coitado naquela noite! Parecia que os deuses tinham apenas sua existência em mente. Ele queria ler um livro leve, algum conto de humor de Tchékhov, algo que o fizesse relaxar para dormir melhor. Mas na minúscula travessia do escritório ao quarto, ele deparou com sua mulher e um filme instigante. Tratava-se de “O Exorcismo de Emily Rose”. Tinha que ser justo naquela noite! Com isso ele não contava.

De forma quase automática, sentou-se ao lado de Alissa e começou a acompanhar com interesse o filme. Ali, possivelmente, ele já sabia ter cometido um erro. Ou não seria um erro? Mas o fato é que não desgrudou mais os olhos da tela. E uma das partes que mais lhe chamou a atenção foi justamente quando o padre explicou o significado bíblico daquele horário, três horas da madrugada, que a sua advogada havia acordado ao som da gravação de uma suposta possessão de Emily. Era nada menos que a hora dos demônios, o inverso das três horas da tarde, um horário divino, quando Jesus teria sido morto. Neste horário, 3:00, os gatos costumam miar pois vêem os espíritos malignos.

Em qualquer outro dia, em qualquer outra hora, isso tudo teria sido motivo de piada para Ricardo. Ele sabia melhor! Já tinha lido Hume sobre as origens naturais das religiões, sabia com Popper que buscamos sempre confirmar nossas teorias em vez de refutá-las, conhecia com Nietzsche as motivações humanas, demasiado humanas por trás dos misticismos. Ou não sabia? Era justamente esta dúvida, novidade trazida bruscamente pela curiosa rede de coincidências daquela noite, que tanto o assustara. Pois tinha um detalhe extra: era noite de fortes ventos uivantes, prenúncio da tempestade que se aproximava. As portas de sua casa batiam como se uma mão invisível quisesse deliberadamente zombar de seu pavor. O assobio do vento forte remetia diretamente aos filmes de terror de sua infância. E justo naquela madrugada! Era acaso demais até para um ateu racional feito Ricardo!

Naquela madrugada, Ricardo foi salvo pelo Valium de sua mulher. A medicina poderia, uma vez mais, conter os arroubos místicos do ser humano. Mas a semente da dúvida já havia sido plantada na mente cética de Ricardo. Suas certezas davam lugar à angústia. E se aquilo foi um aviso? E se foi uma mensagem? Afinal, a racionalização serve justamente para encaixar os fatos em nossas teorias, mas nada pode mudar a imagem que os olhos remelentos de Ricardo captaram naquela madrugada: 3:00. Se ao menos fosse 2:59! Por que não 3:01? Mas não! Tinha que ser exatamente 3:00. Que baita relógio biológico esse, sendo que Ricardo sequer sabia que horas tinha se deitado para dormir. Um legítimo Hublot natural, só se for!

Desde então, quando Ricardo acorda no meio da madrugada, sente-se tentado a olhar o relógio, talvez em busca de um novo “sinal”, talvez para se convencer de que coincidências, por maiores que sejam, de fato existem. Mas na maioria das vezes, ele prefere simplesmente ignorar o relógio e tentar retomar o sono, pensando em outra coisa qualquer – quando isso é possível. Vai que ele olhe aquele maldito 3:00 novamente! Para que produzir “prova” contra si mesmo? Para que desafiar os demônios que hibernam em um canto esquecido de sua mente? Quem procura, acha! Afinal, já diz o famoso ditado: “No creo en las brujas, pero que las hay las hay”. Ainda que seja uma bruxa criada das profundezas de uma mente perturbada. Quem poderia realmente dizer?

O fato é que um ano depois desta fatídica noite, Ricardo vai dormir novamente com esta história na cabeça. Ele havia conversado sobre religião durante o dia, defendendo seu ateísmo publicamente e ridicularizando o poder das orações. Nada como o tempo para apagar aquelas lembranças do medo, do verdadeiro pavor que sentira naquela madrugada, desafiado pelo Desconhecido em suas mais sólidas crenças. Antes de dormir, ele pensa no horário mágico, e questiona qual seria sua reação se acordasse uma vez mais às três horas em ponto. Sorri e vai para a cama, razoavelmente relaxado.

Na madrugada, sua cadela de estimação, que sempre dorme no quarto do casal, começa a andar de um lado para o outro, fazendo um barulho irritante com suas patinhas sobre o piso de madeira, extremamente agitada. Ricardo acorda, abre os olhos e pensa se olha ou não a maldita hora. Afinal, seu suposto relógio biológico não pode controlar também as vontades de sua cachorrinha, pode? Olhar ou não olhar a hora, eis a questão! Há escolha? Ricardo tateia com a mão sua cabeceira, acha seu telefone, e clica no botão para ver o horário digital e luminoso. Lá estava estampado, bem diante de seus olhos incrédulos: 3:00.

5 comentários:

Bernardo Santoro disse...

Rodrigo tem medo de filme de terror, hahahahaha.

Eu, particularmente, só tenho medo do próximo pronunciamento do Mantega (o Freddy Krueger - meu pior pesadelo - de Brasília) sobre economia.

Alexandre Lipski Gonçalves disse...

Excelente, Sr Constantino.
A coincidência é, muitas vezes, o terror do pensamento humano.

Parabéns.

Anônimo disse...

Muito bom
Obrigado. Agora passarei a me preocupar.
Acordo quase diariamente as 3:00 da manhã.

Odair

Galego disse...

Enquanto isso, o governo das 3 da manhã prepara uma medida para taxar os vinhos chilenos. Chamaria isso de Lei Sangue de Boi.

André disse...

Gostei do conto,pra um primeiro conto tá legal sim.Continue escrevendo que outros melhores virão.